Saturday, September 05, 2009

A Dona Alves

Em um de meus tantos empregos que tive na vida, ocorreu uma fato inusitado:
O dono da empresa gostou de mim.
Além do mais, decidiu que eu deveria aprender todas as tarefas, relacionadas ao seu produto.
Ou seja, eu sairia de lá com muito conhecimento.
Isso me entusiasmou, lógico.
Comecei a aprender tudo. Tudo que podiam me ensinar.
As pessoas ficavam um pouco receosas ao me ensinar certas tarefas,
Pois poderia tomar-lhes o lugar.
Mas eu não me preocupava com isso.
Na verdade, nem queria isso.
Sou humilde o suficiente pra conseguir algo por mim.
Certo dia, com muita dedicação e esforço, consegui tirar o lugar de uma pessoa:
A Dona Alves.
Sim, a velha senhora já não tinha tanta força e tanto entusiasmo quanto eu,
E além do mais, eu conseguia alcançar mais alto.
E nos lugares mais baixos também.
Eu me sentia super bem, na verdade.
Estava no auge da minha forma física.
Humilhava aquela velha senhora com dignidade,
Realizando a tarefa dela, algumas 30 vezes melhor que ela.
E algumas 30 vezes mais rápido.
E quando falaram que eu assumiria seu lugar, me senti realizado.
Outro certo dia, eu estava limpando os vidros e cantando,
Quando alguém me cutucou ao ombro,
Embora eu odeie o fato de me cutucarem, olhei pra trás:
-"Olá seu Jéferson, tudo bem?"
-"Tudo. Estou trabalhando."
-"Sim, percebi, mas é que tem uma coisa."
-"Diga."
Pausa:
Não que eu seja antipático, mas quando estou trabalhando gosto de me dedicar e de ficar em silêncio.
E de não ser atrapalhado.
Muito menos cutucado.
Não há nada que me irrite mais do que ser cutucado.
-"Bom, você está no lugar da Dona Alves, né?"
-"Não estou no lugar de ninguém."
-"Sim, mas digo, trabalhando no lugar dela né?"
-"Tá, ela foi demitida, estou no lugar dela sim."
-"Ah. Entendo."
-"Sim, mas o que você quer?"
-"Ah, claro, tem uma coisa."
-"O que?"
-"Você quer comprar uma rifa?"
-"Não, obrigado."
-"Mas por que?"
-"Por que não. Não compro rifas."
-"Mas a Dona Alves sempre comprava..."
-"Sim, mas ela foi demitida."
-"Sim, mas você está no lugar dela."
-"Sim, e o que tem?"
-"Você deve comprar uma rifa."
-"...".
-"...".
-"Tá, quem tá doente?"
-"Ah, isso não importa. São 5 reais."
-"Como não importa? Não achei meu dinheiro no lixo!"
-"Olha, me dê o dinheiro e pronto. Se você quer ficar no lugar da Dona Alves, cumpra a função dela com dignidade!"
Pausa:
Aí ela mexeu comigo.
Dignidade sempre foi uma palavra forte pra mim.
-"Tá bom, tá bom. Estão aqui, 5 reais, ok? Agora deixe-me voltar ao trabalho."
-"Ah, muito obrigada!"

Algumas horas depois, outro cutucão:
-"Moço?"
-"Sim?"
-"Olha, tenho uma rifa pra vender, é pra ajudar meu netinho."
-"Ah, e o que ele tem?"
-"Ele tá querendo comprar um video-game"
-"Tá, mas e por que eu tenho que ajudar?"
-"Bom, você está no lugar da Dona Alves. Ela sempre comprava."
Pausa:
Isso começou a me irritar.
Aquelas pessoas estavam me abusando.


Enfim, dei o dinheiro para aquela senhora também.
Porém, no mesmo dia, "comprei" rifa de outras 5 pessoas.
Na verdade, elas anotavam meu nome para descontar no pagamento.

No dia seguinte, pelo menos 17 cutucões,
Pessoas que queriam colocar piscinas nas casas,
Reformar a cozinha,
Colocar silicone (tá, isso é uma boa causa),
Ir pra balada,
Trocar a perna mecânica,
Enterrar o cachorro,
Ir ao dentista,
Viagem pra Disney,
Troca de sexo,
Só para citar alguns.

Resultado daquele mês: não recebi pagamento.
Meu dinheiro todo ficou para as tais rifas.

E eu me irritei.
Imagina aquela velha senhora,
Ela trabalhava tanto, mas tanto, só para sustentar os outros.
E eu não havia me dado conta.
Não havia percebido o perigo de uma rifa em mãos erradas.

Foi então que pela primeira vez na minha vida, pedi demissão do meu primeiro emprego.
Não pelo fato de pensar na pobre senhora que tomei o lugar;
Nem pelo fato de doar meu dinheiro aos outros
E também não pelo fato das pessoas sem coração que tomavam o dinheiro daquela senhora antes de mim,
Mas o fato, de fato, foi que com a medida do tempo,
Por mais que eu tentasse me conter
Por mais que eu tentasse me esforçar
Eu odeio ser cutucado.

1 comment:

Joao e Fernanda said...

Ora, ora, ora.
Que alegria em vê-lo. O ócio criativo te faria encontrar um final a teu contento, certamente.
Beijo, amigo escritor!